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Uma interpretação da obra de são João da Cruz

A Ciência da Cruz

citações

sábado 31 de Março de 2018

O que se segue é um conjunto de citações, mais ou menos longas, da última obra de Edith Stein (santa Teresa Benedita da Cruz), cuja versão portuguesa foi editada pelas "Edições Loyola", São Paulo, Brasil, 1988. Estas foram retiradas da 4ª edição da referida versão e apenas foram feitas ligeiras e raras alterações formais, de maneira a serem mais facilmente lidas pelos leitores de português de Portugal. Elas tentam transmitir o que de mais importante encontrei neste estudo, formando uma espécie de resumo, muito incompleto e marcado pelas minhas preocupações pessoais - o do leitor seria naturalmente diferente. Para além do que imediatamente ele transmite, pode ser que suscite, também, questões que o levem a ler a obra completa (tanto esta de santa Teresa Benedita como a de são João da Cruz).

"Quando falamos em ciência da cruz, devemos entender que não se trata de uma ciência no sentido comum da palavra, nem somente de uma teoria, ou um simples sistema de asserções verdadeiras. Tampouco de um sistema formal, fruto do pensamento lógico. Ela é, isso sim, uma verdade já aceite, uma teologia da cruz: verdade viva, real e eficaz, comparável a uma semente que, quando lançada na alma, deita raízes, dando-lhe características especiais e determinando-lhe a conduta. Ela brilha e transparece nas atitudes. É neste sentido que se fala em ciência dos santos e que falamos em ciência da cruz. É das características e energias vitais, latentes nas profundezas da alma, que nascem a concepção da vida e a perspectiva em que são encarados Deus e o universo; podendo dessa maneira ser caracterizadas e sintetizadas numa teoria." (pag. 11-12)

"Existem sinais naturalmente perceptíveis a indicar que a natureza humana, tal qual a conhecemos, se encontra num estado decaído. Daí a incapacidade de aprendermos intimamente os factos segundo o seu verdadeiro valor e de reagirmos adequadamente eles. Esta incapacidade pode ter a sua origem numa deficiência inata da inteligência, ou num embotamento geral que pouco a pouco se tenha formado, ou ainda numa insensibilidade positiva para determinadas impressões, quando frequentemente repetidas. Coisas muitas vezes ouvidas e bem conhecidas deixam-nos indiferentes. Acresce ainda que assuntos de interesse próprio e preocupações particulares nos tornam insensíveis a outras coisas. Acontece, porém, que essa insensibilidade e inflexibilidade interiores nos incomodam a ponto de nos fazerem sofrer. A teoria de que aqui se trata de uma lei psicológica pouco nos alivia. Sentimo-nos, por outro lado, felizes , ao perceber que ainda somos capazes de experimentar alegrias profundas e verdadeiras. Mesmo a dor profunda e autêntica se nos afigura uma graça, comparada com o entorpecimento da sensibilidade. Sobretudo no campo religioso torpeza e insensibilidade são dolorosamente sentidas. Muitos fiéis sentem-se deprimidos ao notarem que os factos do plano da salvação não os impressionam mais, nem lhes servem como deveriam, de norma e fonte de energia para a vida. O exemplo dado pelos santos mostra-lhes o que deveria acontecer: quando de facto se crê, as verdades da Fé e as obras maravilhosas de Deus, tornam-se conteúdo da vida, a ponto de as demais coisas perderem importância ou receberem também a marca desse conteúdo. É a isto que chamamos «objectividade dos santos», expressão que designa a receptividade interna e primária da alma, renascida pelo Espírito Santo. Tudo quanto se aproxima dessa alma será apropriadamente captado, com profunda sensibilidade." (pag. 12)

"Com essa objectividade dos santos tem certa semelhança a objectividade das crianças, que recebe as impressões e a elas corresponde com todo o vigor e naturalidade espontâneos. [...] Existem almas, precocemente escolhidas pela graça de Deus, que reúnem em si a «objectividade dos santos» e o realismo da alma infantil. Conta-se que santa Brígida, aos dez anos, ouviu falar, pela primeira vez, na paixão e morte de Cristo. Na noite seguinte, apareceu-lheo Crucificado. A partir de então, jamais pôde meditar a paixão de Cristo sem derramar lágrimas." (pag. 13)

"No caso de são João da Cruz, deve ser levada em conta uma terceira circunstância: ele ele foi um artista por natureza. [...] Portanto, devemos levar em consideração a sua objectividade própria de artista. Na impressionabilidade vigorosa e genuína, o artista, a criança e o santo muito se assemelham." (pag.13)

"Toda a arte, independentemente da intenção do artista, é, ao mesmo tempo, um símbolo. [...] Há um símbolo quando algo da plenitude do sentido das coisas penetra a mente humana e é captado e apresentado de tal maneira que a plenitude do sentido - inexaurível para o conhecimento humano - seja misteriosamente insinuada. Desse modo, toda a verdadeira arte é uma espécie de revelação, e a produção artística, um ministério sagrado. [...] Nele [são João da Cruz] a «objectividade própria » da criança, do artista e do santo uniram-se para preparar as condições favoráveis à mensagem da cruz, que se transformaria em ciência da cruz. (pag. 14-15)

"Cristo entrega a sua vida para dar aos homens a entrada na vida eterna. Porém, para ganharem a vida eterna, eles deverão por sua vez, sacrificar a vida terrena. Deverão morrer com Cristo para com ele ressurgir: isto quer dizer que pelo sofrimento e abnegação de si mesmos devem morrer, diariamente, durante a vida toda e, se necessário, aceitar o martírio em testemunho do evangelho." (pag. 20)

"Por certo os planos da Salvação estendem-se a toda a humanidade [...]. Mas Deus cuida de cada alma em particular. Cada alma é, em si, para ele, uma esposa, toda cercada de carinho e de fidelidade conjugal e paternal." (pag. 21/22).

"A alma está unida a Cristo e viverá da vida de Cristo - se consentir em entregar-se completamente a ele, seguindo-lhe inteiramente o caminho da cruz. Essa doutrina encontramo-la com toda a clareza e vigor nas mensagens de são Paulo, já possuidor de uma ciência da cruz bem desenvolvida, uma teologia da cruz fruto da sua própria experiência íntima:

«Pois não foi para baptizar que Cristo me enviou, mas para anunciar o evangelho, sem recorrer à sabedoria da linguagem, a fim de que não se torne inútil a cruz de Cristo. Com efeito, a linguagem da cruz é loucura para aqueles que se perdem, mas para aqueles que se salvam, para nós, é poder de Deus (...). Os judeus pedem sinais, e os gregos andam em busca de sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus é escândalo, para os gentios é loucura, mas para aqueles que são chamados - tanto judeus como gregos - é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.» [1]" (pag. 22)

"A força redentora foi conferida ao Verbo, na Cruz, e estende-se a todos os que acolhem o Verbo de coração aberto, sem exigir milagres ou argumentos intelectuais de sabedoria humana. Em tais almas, o Verbo, na cruz, torna-se a força vitalizante que denominamos ciência da cruz na qual são Paulo se tornou mestre:

«De facto, pela Lei eu morri para a Lei, a fim de viver para Deus. Fui crucificado junto com Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. A minha vida presente na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim» [2] ." (pag.23)

"Quem se decidiu por Cristo morreu para o mundo e este para ele, e traz no seu corpo os estigmas do Senhor Jesus, [3]tornou-se fraco e desprezado pelos homens e, contudo, forte, porque o poder de Deus se manifesta na fraqueza. [4] Assim o discípulo de Cristo não somente aceita a cruz, como também se crucifica, «pois os que são de Jesus Cristo crucificaram a carne com suas paixões e seus desejos». [5] Travaram luta feroz contra as inclinações da natureza para que o pecado morresse neles e desse lugar à vida do Espírito. Esta última é o que importa: a cruz não é um fim em si mesma. Ela ergue-se e aponta para o alto. Não é somente sinal, é a arma forte de Cristo. É a vara do pastor, com que o David divino vai de encontro ao Golias das trevas e com a qual o golpeia, abrindo a porta do céu. E a torrente da luz divina transbordará, envolvendo a todos os que formam o séquito do Cristo crucificado." (pag.24)

"Morrer com Cristo na cruz para com ele ressurgir é uma verdade que se verifica - para cada fiel e principalmente para cada sacerdote - na realidade do santo sacrifício da Missa. De acordo com a Fé, o sacrifício da missa é a renovação do sacrifício da cruz. Quem o celebra ou dele participa com fé viva alcançará os mesmos efeitos que se produziram no Calvário." (pag. 24)

"O santo sacrifício foi instituído por decreto da Divina Trindade, em sua honra é realizado, para franquear o acesso à sua eternidade." (pag. 25)

"A cruz e a noite são o caminho são o caminho para a luz celeste - eis a jubilosa mensagem da cruz." (pag. 33)

"O verdadeiro espírito antes procura em Deus a amargura que as delícias, prefere o sofrimento ao consolo, a privação ao gozo, a aridez e as aflições às doces comunicações celestes, sabendo que isto é seguir a Cristo e renunciar-se. Agir de outro modo é buscar-se a si mesmo em Deus, o que é muito contrário ao amor." (pag. 34)

"... assim como por meio da árvore proibida no paraíso, foi essa natureza [humana] estragada e perdida por Adão, assim na árvore da cruz foi remida e reparada. [6]" (pag. 35)

"Quanto mais perfeita for a crucifixão ativa e passiva, tanto mais íntima será a união com o crucificado, e tanto maior será a participação na vida divina." (pag. 35)

"Sendo que são João foi declarado Doutor pela Santa Igreja, quem desejar esclarecer-se sobre questões de mística, no âmbito da doutrina católica, deverá a ele se dirigir." (pag. 37)

"Ele sempre levou em conta a grande variedade dos diversos caminhos e a adaptação suave e flexível da graça às condições particulares das almas." (pag. 38)

"Existe uma noturna e suave claridade do espírito, em que livre da faina diurna, distendido e recolhido ao mesmo tempo, ele se concentra no profundo sentido do seu ser e da sua existência, do mundo e do sobrenatural." (pag. 42)

"A noite mística não deve ser entendida em sentido cósmico; ela não vem de fora, mas tem a sua origem no íntimo da alma e só envolve a alma na qual penetra. Mas os efeitos que produz nessa alma são comparados aos da noite cósmica: o mundo exterior fica "envolto em trevas", ainda que haja a clara luz do dia; produzem-se na alma solidão, abandono e vazio, a atividade das suas faculdades fica tolhida, afligem-na ameaças de pavor que a noite esconde em seu seio. Há, porém, uma luz noturna que abre no fundo da alma um mundo novo e ilumina com a sua claridade interna o mundo exterior, revelando-o completamente mudado." (pag. 43)

"A preponderância do símbolo da noite vem indicar que, nos escritos do Santo Doutor da Igreja, quem fala não é tanto o teólogo: é mais o poeta e o místico, embora o teólogo vigie e governe com cuidado os pensamentos e expressões" (pag. 44)

"A fim de se livrar dos grilhões da sua natureza sensível, deve a alma empenhar todas as energias disponíveis, mas é preciso que Deus venha em seu auxílio e lhe envie a graça preveniente: Deus inicia a sua acção e também a completa." (pag.46)

"O desaparecimento do mundo sensível é como o cair da noite, quando ainda resta uma luminosidade crepuscular, resquício da claridade diurna. Mas a fé como escuridão da meia noite, porque neste ponto acham-se apagados não só a actividade dos sentidos, mas também o entendimento natural da razão. Quando, enfim, a alma encontra o próprio Deus, é como se rompesse em sua noite a alvorada do dia da eternidade." (pag. 46)

"Não se trata, por certo, de extinguir a percepção dos sentidos: eles são como janelas pelas quais recebemos a luz da nossa inteligência enquanto estivermos no cárcere escuro da existência corporal e, enquanto existirmos, deles não poderemos prescindir. Devemos, porém, aprender a ver, a ouvir, etc... como se não víssemos ou ouvíssemos nada. O que deve mudar é a nossa atitude fundamental em face do mundo sensível." (pag. 47)

"O início da Noite escura traz consigo uma total novidade: o «sentir-se em casa» neste mundo, tão natural e agradável; os prazeres que proporciona; o desejo desses prazeres e, logo em seguida, a sua aceitação. Enfim, tudo quanto constitui e representa o cotidiano do homem é, aos olhos de Deus, escuridão, incompatível com a Luz divina. Na alma, tudo isso tem de ser cortado pela raiz, se nela se quiser dar lugar a Deus. Corresponder a esse imperativo significa abrir luta contra a natureza humana; significa tomar sobre si a própria cruz e entregar-se à crucifixão. [...]o império do desejo na alma é realmente escuridão, como será comprovado: a concupiscência cansa e atormenta a alma, deixando-a em escuridão, mancha-a e esgota-lhe as forças; rouba-lhe o espírito de Deus, de quem se afastou pela entrega ao espírito animal. Lutar contra a concupiscência, ou tomar sobre si acruz, significa entrar activamente na noite escura." (pag. 48)

"A alma é incapaz de ter ideia de Deus pelo pensamento discursivo, ou de fazer progresso por meio do pensamento reflexivo auxiliado pela imaginação.

A aridez e o vazio tornam a alma humilde. O orgulho de outrora desaparece, por não encontrar a alma em si mesma coisa alguma que ainda lhe sirva de estímulo a olhar os outros com desdém; despertam-se agora no próprio coração amor e estima por eles. [...] A avareza espiritual é radicalmente curada: não mais encontrando gosto em nenhum exercício espiritual, torna-se comedida e há de fazer o que faz unicamente por amor a Deus, sem procurar nisso satisfação pessoal. [...] A noite escura torna-se escola de todas as virtudes: ensina a resignação e a paciência, [...] a perseverança em todas as contrariedades assegura-lhe ânimo e fortaleza. A purificação completa de todas as inclinações e desejos sensíveis, leva a alma à liberdade de espírito, em que amadurecem do espírito os frutos, [7] e essa liberdade garante abrigo e segurança contra os três inimigos - o demónio, o mundo e a carne -, que nada poderão contra o espírito, porque a alma «saiu sem ser notada». A casa está em profunda paz, uma vez que as paixões se acalmaram e a sensibilidade adormeceu, pela aridez.

A alma escapou, encontrou o caminho do espírito, o caminho dos adiantados, a via iluminativa onde o próprio Deus lhe serve de mestre [...] Antes de entrar na noite do espírito, a alma experimentará, além da aridez e do vazio, dolorosas e profundas provações, causadas por penosas tentações: o espírito de impureza e o de blasfémia apoderam-se da sua imaginação, o espírito mentiroso causa-lhe escrúpulos, confusões e perplexidades. São tempestades que têm por fim provar e fortalecer as almas. [...] Quanto mais alto o grau de união amorosa que Deus reserva à alma, tanto mais profundas e demorada será a purificação. [...] À medida que morre o homem carnal é que se dá a ressurreição do homem espiritual." (pag. 53-55)

"João da Cruz denominou a noite do espírito, «caminho estreito». Antes a Fé já fora designada «caminho», e a sua escuridão denominada «meia noite». Daí se concluir que, na noite do espírito, a Fé representa o papel principal." [...] (pag. 55)

"A segunda noite é mais escura que a primeira: aquela atingiu a parte sensível do homem e foi de natureza mais exterior, ao passo que a noite da Fé atinge a parte superior, racional; é de natureza interna, e priva a alma do entendimento, chegando até a cegá-la." (pag.56)

"Ouvindo falar alguém de alguma coisa nunca vista e não conhecida sequer por semelhança com outra, o que [a inteligência] pode apreender é somente o nome da coisa, mas nunca adquiri-lhe a imagem. Seria o caso do cego de nascença em relação às cores. Algo assim nos acontece em matéria de Fé, pois esta refere-se a realidades que nunca vimos ou ouvimos: desconhecemos também coisas que lhe sejam semelhantes. Resta-nos uma única atitude admissível: aceitar o que nos foi dito, pondo de lado a luz do nosso conhecimento natural. cabe-nos dar assentimento ao que nos foi dito, embora não nos tenha sido mostrado pelos sentidos. Por isso, a Fé é para a alma uma noite totalmente escura. Mas é por isso também que a Fé traz a luz à alma: um conhecimento com absoluta certeza, que supera todo e qualquer outro conhecimento e ciência, de modo que só se chega à verdadeira concepção da Fé pela perfeita contemplação. Eis por que está escrito: «Si non credideritis, non intelligetis» - Se não o crerdes não o compreendereis. [8]" (pag. 56-57).

"Após ter renunciado na noite dos sentidos a todos os desejos de criaturas, deverá [a alma], para chegar a Deus, morrer para as forças naturais, ou seja, para os sentidos e a razão.

Para conseguir a transformação sobrenatural, é preciso deixar tudo quanto faz parte do homem natural. A alma precisa abandonar mesmo os bens sobrenaturais, caso Deus os tenha dado. Ela deve separar-se de tudo o que se refira ao entendimento. Deve manter-se às escuras - como um cego - apoiando-se na Fé escura, tomando-a como guia e luz, e não se apoiando em nada do que entende, prova, sente e imagina, porque tudo isso são trevas que a farão errar [...] Para chegar à união com Deus, é preciso crer em seu ser, o qual não é apreendido pelo entendimento, nem pelo desejo, nem pela imaginação ou qualquer outro sentimento, nem se pode saber nesta vida." (pag. 57-58)

"A união sobrenatural realiza-se quando a vontade da alma se conforma a tal ponto com a vontade de Deus que ambos constituem uma só vontade, e não há em nenhuma delas nada que possa contrariar a outra. [...] A união chegará a tal ponto que... todas as coisas de Deus e da alma se tornam unas, pela transformação e pela participação, e a alma parece mais Deus que ela mesma... ela é Deus por participação, embora o seu ser continue naturalmente distinto dele, tanto quanto antes." [...] (pag. 58-59)

"O despojamento necessário para a união transformadora é levado a efeito no entendimento pela ; na memória pela Esperança; na vontade pelo Amor. [...] a reduz a razão ao nada, levando-a reconhecer a sua incapacidade diante da grandeza de Deus. A Esperança esvazia a memória, levando-a a ocupar-se com algo que não possui. [...] Ela ensina-nos que devemos esperar tudo de Deus e nada de nós mesmos ou das criaturas. [...] O Amor, enfim, liberta a vontade de todas as coisas, obrigando-a a amar a Deus acima de tudo, o que só é possível se excluídos os desejos das coisas criadas.

[...] esse caminho de completo despojamento é o caminho estreito que somente poucos encontram. [9] É o caminho que conduz à alta montanha da perfeição e que só pode ser trilhado porquem estiver livre de qualquer peso que o arraste para baixo. É o caminho da cruz, para o qual o Senhor convida os seus discípulos: «Se alguém me quer seguir, renuncie-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Porque o que quiser salvar a sua vida vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por amor de mim, esse a salvará». [10]" (pag. 59-60)

"Beber o cálice do Senhor [11] significa morrer para a natureza, quer sensível quer espiritual. Só assim se trilha o caminho estreito, pois nele não cabe mais que a abnegação e a cruz, a qual é o corrimão para subir, que muito alivia e suaviza a caminhada. É por isso que Jesus disse: «O meu jugo é suave e o meu fardo é leve». [12] Este fardo é a cruz; porque se o homem se decide a sujeitar-se a carregar essa cruz, quer dizer, procura em tudo, por amor de Deus, as fadigas e as toma sobre si alegremente, encontrará de facto grande alívio e doçura em todas as coisas e caminhará nesta completa renúncia sem desejar coisa alguma." (pag. 60-61)

"Tomando tudo isso em consideração, é de esperar que a alma verdadeiramente espiritual «entenda o mistério da porta estreita e do caminho de Cristo para se unir a Deus, e saiba que, quanto mais se aniquila por Deus, sensível e espiritualmente, tanto mais se une a ele e tanto maior a obra que faz. e Quando vier a ficar reduzida ao nada, o que constitui a suprema humilhação, estará realizada a união espiritual entre a alma e Deus, o mais alto estado a que nesta vida se pode chegar». Essa união «não consiste, pois, em recreações, gozos e sensações espirituais, mas numa viva morte de cruz, sensível e espiritual, interior e exterior». [13]" (pag. 61-62)

"A escuridão que leva a Deus é como já sabemos a . Ela é o único meio que leva à união, ao colocar-nos diante dos olhos Deus tal qual ele é: Deus infinito, uno e trino. [...]Por ora, dependemos inteiramente dessa Fé. O que ela nos ensina, pela contemplação, é um conhecimento geral e obscuro: a contemplação é oposta não somente às atividades naturais do entendimento, como também às diversas maneiras de o entendimento chegar a conhecimentos sobrenaturais particulares claramente perceptíveis, tais como visões, revelações, locuções e sensações espirituais. [...] Os sentidos arrogam-se o poder de opinar sobre coisas espirituais, quando neste assunto são tão ignorantes como um jumento nas coisas racionais. Nesse terreno, é possível também que o demónio exerça os seus enganos, pois tem influência nas coisas corporais. E mesmo que as imagens fossem enviadas por Deus seriam menos proveitosas para o espírito - e tanto menos o serão quanto mais aparecerem exteriormente: isto porque favorecem menos o espírito de oração e dão a entender que são mais importantes e mais capazes de conduzir que a própria Fé. E o demónio aproveita-se de preferência disso tudo para causar dano às almas. Por todas essas razões convém rejeitar essas aparições. Se elas forem enviadas por Deus, nenhum perigo correrá a alma ao rejeitá-las, porque toda e qualquer comunicação vinda de Deus, no «instante mesmo em que aparece ou é sentida, produz efeito no espírito, sem dar lugar a que a alma tenha tempo de deliberar se o quer ou não». Ao contrário das visões de origem diabólica «que só podem dar os primeiros impulsos à vontade - mas não movê-la além desse ponto, se ela não quiser». as visões divinas «penetram a alma e movem a vontade a amar, deixando efeito ao qual ela não pode resistir embora o queira... Apesar desses proveitos salutares, não convém à alma aspirar a essas visões divinas [...] o desejo de visões abre as portas ao demónio [...]" (pag. 63-64)

"Assim como hão de ser rejeitadas as sensações dos sentidos exteriores, devem sê-lo também as sensações dos sentidos interiores, da imaginação e da fantasia. [...] Para os principiantes, pode ser necessário imaginar Deus como um grande incêndio, um clarão ou algo semelhante, a fim de, por meio do sensível, suscitar ou inflamar o amor na alma. Essas imagens importam também como meios remotos; as almas devem ordinariamente passar por tal fase para chegarem ao final, à mansão do repouso espiritual... mas é preciso que passem... e não permaneçam... pois dessa maneira nunca chegariam ao final»" (pag. 64-65)

"Todas as inquietações e aflições da alma têm origem na má compreensão desse estado [da contemplação] e da volta à meditação, agora estéril.

Na contemplação, as potências espirituais - memória, inteligência e vontade - acham-se reunidas num só ato simultâneo. [...] A alma vê-se mergulhada num profundo esquecimento e vive como que fora do tempo. A oração parece-lhe curta, embora às vezes dure várias horas. Essa oração, aparentemente breve, «penetra os céus, pois a alma está unificada em si mesma num conhecimento celestial». " (pag. 66)

"A vontade vê-se tomada de amor, mergulhada nele, embora não saiba exatamente qual seja o objeto desse amor. [...] É uma luz clara e pura que se derrama na alma." (pag. 66)

"Nesse estado de união de amor, Deus não se comunica à alma por meio de visões imaginárias ou semelhanças, ou imagens, mas... boca a boca [...] Para chegar a esse ponto, é necessária uma longa caminhada: é por graus que Deus conduz a alma a essa altura sublime. Ele adapta-se, inicialmente, à sua natureza, comunicando-lhe de início «o espiritual por meio de coisas exteriores, palpáveis: dá-lhe instrução... por formas, imagens e meios acessíveis ao seu modo de entender... ora naturais, ora sobrenaturais... e também por raciocínios; e eleva-a paulatinamente ao entendimento do supremo espírito de Deus». " (pag. 66-67)

"Antigamente falou Deus, prometendo-nos o Cristo. Agora, porém, tudo nos deu com o próprio Cristo, dizendo: «Ouvi-o!» Mt 17,5." (pag.67)

"Esse obscuro conhecimento amoroso, que é a Fé, serve nesta vida para a divina união, como a luz da glória serve na outra de meio para a visão clara de Deus" (pag.69)

"Soba a influência da luz espiritual, as coisas ficam gravadas profundamente na alma, a ponto de, todas as vezes em que voltam à consciência, serem conhecidas tal como na primeira vez. [...] Quando o abandono, a obscuridade e a pobreza do espírito permitem à Fé enraizar-se na alma, infundem-lhe, simultaneamente, a Esperança e a Caridade, Caridade que se manifesta, não por afetos sentimentais, mas por aumento de forças, maior generosidade e coragem da alma, a um ponto até então desconhecido. [...] (pag,69)

"É preferível à alma não querer ver com clareza as coisas da Fé, para conservar-lhe o mérito puro e inteiro, e para assim chegar, pela noite da Fé e sem perigo de erro, à união divina." (pag.72)

"Quando o entendimento está recolhido em meditação, então ele une-se à verdade sobre a qual pensa. O Espírito também está unido a ele naquela verdade - como o está sempre, em toda a verdade -, daí se compreender a união da inteligência com o Espírito Santo pela verdade." (pag.72)

"«Devemos contentar-nos em saber os mistérios e verdades da fé com a simplicidade e a verdade com que a Igreja no-lo propõe; isto basta para inflamar muito a vontade...»" (pag.73)

"O caminho da Fé percorre a noite escura e é ao mesmo tempo o caminho da cruz. O que se disse até agora sobre as riquezas e as graças da iluminação indica-nos a renúncia que delas se exige. Somente quem tiver possuído essas riquezas pode avaliar como é dolorosa uma renúncia voluntária; como a escuridão se torna espessa ao fechar-se os olhos em plena luz; como é uma verdadeira crucifixão cercear a vida do espírito e subtrair-lhe tudo quanto lhe agrada." (pag.76)

"E como não há forma ou figura alguma com que a memória possa atingir a Deus, é preciso nada menos que desfazer-se totalmente de todas as formas que não são Deus." (pag.76)

"Para fugir a tudo isso, convém à memória livrar-se de tudo quanto a aproxima de Deus sob a forma de imagens ou comparações tiradas de coisas criadas." (pag.77)

"O bem moral consiste em refrear as paixões e pensamentos desordenados, «a que se seguem tranquilidade, paz, sossego e virtudes morais». Todas as inquietações e obstáculos à paz da alma são causados pelo conteúdo da memória." (pag. 77)

"«quanto mais a memória se despoja, tanto mais ganha em esperança... tanto mais união com Deus terá»" (pag.78)

"a recusa às comunicações divinas não significa «apagar o espírito», o que aconteceria se a alma impedisse com a sua obra ativa o que Deus lhe comunica passivamente" (pag.79)

"«Portanto, deve a alma somente buscar, em todas as apreensões sobrenaturais - visões, locuções, revelações - não se deter na aparência exterior, isto é, no que significam, representam ou fazem compreender; mas admitir unicamente o amor divino que essas comunicações despertam interiormente.»" (pag. 79)

"Enfim, sejam boas ou más [as imagens impressas na alma], é sempre bom para a alma não querer compreender coisa alguma, procurando antes ir a Deus pela fé e na esperança." (pag.80)

"«A força da alma reside nas suas faculdades, paixões e apetites, governados pela vontade. Quando a vontade os dirige para Deus e os afasta de tudo o que não é ele, guarda a fortaleza da alma para o Senhor, e na verdade ama-o com todas as forças»" (pag. 81)

"As paixões, quando desordenadas, produzem na alma todos os vícios e imperfeições, e quando ordenadas e bem dirigidas, geram todas as virtudes. " (pag. 81)

"E portanto, se alguém se dispõe a amar a Deus, não é pelas deliciosas sensações que sente, mas deixa-as por Deus, a quem não sente. [...]

Infeliz aquele que pensa a ausência de deleites espirituais como ausência de Deus, ou, possuindo-os, ache que então possui a Deus. A união a Deus só é obtida pelo vazio das tendências quanto a qualquer gozo particular." (pag. 82)

"Quem, entretanto, conseguir livrar-se de todo o apego aos bens temporais, alcançará a liberdade de espírito, a clareza da razão, calma, tranquilidade e confiança em Deus, além da submissão da vontade à vontade divina." (pag.83)

"Da equivocada alegria pelas próprias boas obras nascem a soberba farisaica e a presunção, o desprezo pelos outros e o desejo de ser elogiado - com o que se perde o mérito eterno. Isso equivale à injustiça e à negação de Deus, autor de toda e qualquer boa obra." [...] «Tais almas afrouxam muito no amor a Deus e ao próximo, pois o amor-próprio que têm pelas suas obras fá-las arrefecer na caridade»" (pag. 87)

"«... Onde houver mais sinais e testemunhos, menos merecimento haverá em crer.»" (pag. 88)

"A pessoa verdadeiramente devota faz do invisível o objeto principal da sua devoção; não necessita de muitas imagens e prefere as que se conformem mais ao divino que ao humano; nem se aflige se lhas tiram. [...] A alma deve abstrair-se daquilo que ajuda a levar o coração a Deus e não fazer disso estímulo para os sentidos, pois o instrumento que serviria de apoio passa a ser obstáculo." (pag. 90)

"Numerosos perigos podem surgir do uso de imagens, ainda que haja muita piedade: o demónio aproveita-se delas para surpreender as almas imprudentes - por exemplo, por meio de aparições sobrenaturais simuladas (as imagens começam a mover-se, a dar sinais, etc.). [...] Aos principiantes, é relativamente permitido esse apego devocional «sensível», pois isso ajuda a perder o gosto pelas coisas profanas. Mas o verdadeiro espiritual conhece somente o recolhimento interior e as relações espirituais da mente com Deus. Convém orar em lugares convenientes, tais como igrejas e lugares tranquilos que ofereçam a boa atmosfera à oração; mas para adorar a Deus «em espírito e verdade», [14] deve-se escolher um lugar que não agrade aos sentidos. (pag. 91)

"Embora Deus não esteja preso a lugar nenhum, parece que deseja ser louvado no próprio lugar onde concedeu graças." (pag. 92)

"Deus não está adstrito às leis da vida psíquica natural: nesse plano, é impossível amar sem conhecer antes o que se ama. Entretanto, Deus pode por via sobrenatural infundir e aumentar o amor sem infundir ou aumentar determinado conhecimento. [...] Mas isso não deve levar à conclusão de que geralmente a fé somente desperte amor, sem comunicar conhecimento. Pelo contrário: ela dirige-se primeiramente à inteligência, abrindo-lhe o entendimento à verdade divina." (pag. 113)

"Quando a alma experimenta, nesta sua entrega, o ser tomada por Deus, ele se comunica a ela ao mesmo tempo como luz e calor." (pag. 114)

" Todos os erros da alma costumam ser provocados pelas suas tendências, gostos, raciocínios. Donde, impedidos todas essas operações e movimentos, claro está que a alma fica assegurada contra os erros que eles provocam... ela não se livra somente de si, mas também dos outros inimigos - o mundo e o demónio - pois, canceladas as suas inclinações e operações, estas já não a podem hostilizar em parte alguma... As suas tendências e faculdades já não se perdem em coisas inúteis e perigosas; ela sente-se segura perante «a vanglória, falsa complacência e muitas outras coisas». [...] Por isso a alma pode julgar a aridez e a escuridão como bons sinais; são indícios de que Deus está trabalhando para livrá-la de si própria. [...] Ele a conduz como a um cego, por caminhos escuros, sem que a alma saiba por onde e para onde, mas são caminhos que ela própria nunca teria encontrado, ainda que nas circunstâncias mais propícias e no gozo da visão mais aguçada. [...]«Somente ao olhar para trás se dará conta de que estava bem segura na escuridão.» Além disso, o caminho foi seguro porque era uma via de sofrimentos. No sofrimento, a alma recebe força de Deus, ao passo que no agir e gozar põe à mostra s suas fraquezas e imperfeições." [...] A alma logo há de notar em si a firme resolução de jamais fazer algo que reconheça ofender a Deus e de nada omitir daquilo em que julga poder prestar-lhe serviço. Esse obscuro amor desperta-lhe vivo cuidado e solicitude interior por tudo quanto deva fazer ou omitir, a fim de agradar a Deus." (pag. 116-118)

"A escada secreta é a contemplação escura: é secreta por ser sabedoria mística de Deus, misteriosamente infundida na alma pelo amor. [...] Como aquele que enxergasse uma coisa que nunca tivesse visto antes...: por muito que se esforçasse não saberia dizer o que é. Como seria possível à alma expressar o que não lhe passou pelos sentidos?" (pag.118)

"Assim como pela escada se sobe para se alcançar os bens, tesouros e riquezas que se acham numa fortaleza muito alta, assim também por esta secreta contemplação, sem saber como, a alma sobe e toma posse dos bens e tesouros do céu. [...] Nesse caminho, a alma está sujeita a altos e baixos; à prosperidade segue-se sempre alguma tempestade ou aflição. [...] Após a miséria e o tormento, seguem-se também a abundância e a tranquilidade. [...] A causa disso é que o estado de perfeição consiste no perfeito amor a Deus e desprezo de si mesmo; desta forma, não pode deixar de ter essas duas partes - o conhecimento de Deus e o conhecimento de si mesmo [...]" (pag.121)

"Contudo, a contemplação é «escada» principalmente porque é «ciência de amor... conhecimento infuso e amoroso de Deus, o qual vai, ao mesmo tempo, ilustrando e enamorando a alma até elevá-la, de grau em grau, ao Deus criador - pois é somente o amor que une a alma a Deus.»" (pag. 120)

"O primeiro grau de amor faz alma adoecer em seu próprio bem. Mas essa enfermidade não é para a morte, mas para a glória de Deus. A alma morre para o pecado e para todas as coisas que não são Deus. O segundo degrau faz a alma buscar incessantemente a Deus. O terceiro degrau a estimula a agir e lhe dá calor, para que ela não desfaleça. [...]

O quarto degrau causa na alma um habitual «suportar sem fatigar-se». O amor faz com que todas as coisas grandes, graves e pesadas nada lhe pareçam. [...] Este degrau do amor é muito elevado. [...]

O quinto degrau do amor faz a alma desejar e cobiçar a Deus impacientemente. [...]

No sexto degrau, a alma corre ligeiramente para Deus e com frequência sente a sua proximidade. [...] A ligeireza que agora lhe é peculiar é causada pela grande dilatação da caridade e por estar quase completo o processo de purificação. Desta forma logo há de chegar ao sétimo degrau.

Aqui a alma anima-se bastante. O amor já não se vale do juízo para esperar, nem do conselho para retirar-se, nem da vergonha para refrear-se. Tais almas alcançam de Deus tudo quanto lhes apraz pedir. Após esse destemor e confiança concedidos por Deus à alma, neste sétimo degrau, segue-se o oitavo degrau, que consiste em apoderar-se do Amado e a ele se unir. [...

O nono degrau corresponde aos perfe3itos, que ardem no amor de Deus com muita suavidade. É um ardor cheio de doçura e deleite, produzido pelo Espírito Santo, em razão da união que essas almas têm com Deus. [...]

"O décimo e último degrau da escada secreta do amor já não mais pertence a esta vida. Este degrau faz a alma assemelhar-se totalmente a Deus, em virtude da clara visão de Deus que ela possuirá imediatamente ao sair do corpo, se tiver alcançado nesta vida o nono degrau. Essas poucas almas não passam pelo purgatório, pois já estão perfeitamente purificadas pelo amor. [...] «Eis como a alma, por meio dessa sabedoria mística e amor secreto, vai saindo de todas as coisas e de si mesma e subindo até Deus; porque o amor é semelhante ao fogo que sobe em labaredas às alturas [...] (pag. 120-122)

"A é uma «túnica» interior de tão excelsa brancura que ofusca a vista de qualquer inteligência. o demónio então não a ê (a alma), nem ousa prejudica-la. [...]

Sobre a túnica branca da Fé veste a alma a «almilla» verde da esperança. A alma com ela liberta-se e defende-se do segundo inimigo, o mundo. [...]

Sobre o branco e o verde, para o remate e perfeição da libré, traz a alma uma terceira cor, qual seja, uma «toga» vermelho-vivo, como sinal da terceira virtude, o amor. Com ela a alma fica amparada e escondida do terceiro inimigo, a carne; porque onde existe verdadeiro amor a Deus não cabe o amor a si mesmo ou aos seus próprios interesses. [...]

A esvazia e obscurece a inteligência de todos os seus conhecimentos naturais, dispondo-os assim para a união com a Sabedoria divina; a esperança esvazia e afasta a memória de toda a posse de criaturas e põe-na naquilo que espera; a caridade esvazia e aniquila as inclinações e tendências da vontade por qualquer coisa que não seja Deus e põe-nas somente nele. Sem o traje das três virtudes, é impossível à alma chegar à perfeita união com Deus no amor. (pag. 123-124)

"A escuridão permitiu-lhe [à alma] caminhar protegida das ciladas e perseguições do demónio; porque toda a comunicação infusa é comunicada secretamente à alma, sem a sua colaboração; todas as potências da parte sensível ficam na escuridão. Ora, é somente por meio das faculdades sensíveis que o demónio percebe e compreende «o que há na alma... e o que nela se passa». Assim, quanto mais espiritual, interior e elevado e quanto mais ultrapassar o conhecimento sensível, menos a comunicação será acessível e inteligível ao demónio. [...] ele procura por todos os meios alvoroçar e perturbar a parte sensível e externa (que está ao seu alcance), provocando-lhe sustos, dores, receios e angústias, a fim de causar inquietação e intranquilidade nas partes superiores e espirituais [...] poderá simular uma falsa visão [...] mas não poderá jamais simular comunicações puramente espirituais, pois estas não possuem nenhuma forma ou figura, portanto inacessíveis a qualquer imitação" (pag.124-125)

"O encontro (a união da alma com o Esposo) não se pode dar sem ela estar completamente purificada. «Portanto quem se recusar a sair na noite... à procura do Amado e não quiser renunciar à própria vontade nem mortificar-se, mas o quiser procurar em seu próprio leito, comodamente... não haverá de encontra-lo».

[...] Para chegar a Deus, ela não há de interessar-se por mais nada além dele próprio." (pag. 126-127)

"A alma, sendo espírito, encontra-se no reino do espiritual e dos espíritos. A estrutura que apresenta é-lhe inteiramente peculiar: a alma não é somente a forma vivificante do corpo, ou seja o interior do exterior; também nela existe o contraste entre interior e exterior. É no seu íntimo, na sua essência, que a alma se encontra em casa. Por meio da atividade natural das suas faculdades, ela sai de si própria e vai ao encontro do mundo exterior, exercendo uma atividade sensível, que é inferior a ela mesma. Aquilo que a alma sai para encontrar é por ela absorvido e por sua vez absorve-a: determina-a nas suas ações e condutas e, em certo sentido, limita-lhe a liberdade; não pode por certo penetrar o íntimo da alma, mas pode mantê-la afastada do seu próprio íntimo.

Deus é puro espírito, [...] um mistério que nos envolve constantemente [...]. à medida que aumenta o nosso conhecimento de Deus, esse mistério vai-se desvendando num nível mais profundo; mas nunca é completamente desvendado, ou seja , jamais deixa de constituir um mistério.

Falamos num Reino do Espírito e dos espíritos, porquanto todos os seres espirituais possuem uma relação entre si, ao menos possivelmente, e porquanto fazem parte de um todo. [...] Nesse reino Deus tem o primeiro lugar, excedendo infinitamente todo o espiritual e todos os espíritos. Um espírito criado só pode elevar-se até ele erguendo-se acima de si mesmo. Deus é o fundamento que sustenta todo o ser, dando-lhe existência e conservando-o. O que a ele subir encontra nele, simultaneamente, o seu apoio seguro." (pag. 127-129)

"São João da Cruz denomina a Deus «o ponto de repouso da alma» (centro de gravidade) ]...] Quanto maior o grau de amor, tanto mais intimamente a alma é possuída por Deus. Pelos degraus da escada , a alma sobe para Deus, para a união com ele; e quanto mais sobe para Deus, tanto mais profundamente desce em si mesma: a união há de realizar-se no íntimo da alma, nas profundezas do seu âmago. [...]

Deus mora no mais íntimo da alma e nada do que dentro dela se encontra lhe é oculto. Mas nenhum dos espíritos criados poderá , por si próprio, entrar nesse jardim fechado ou espreita-lo [....]

[São João da Cruz] afirma que os homens dotados do discernimento dos espíritos reconhecem por poucos sinais exteriores, qual o estado interior de outrem. [15] Por aí se deduz que a via normal de conhecimento da vida psíquica do próximo passa pelas manifestações sensíveis da vida psíquica e aprofunda-se até onde o interior se manifesta. De facto a toda a exteriorização, mediante expressões sensíveis, sensações, sons, palavras, acções e obras, corresponde certa manifestação interior, espontânea ou não, consciente ou inconsciente (isto temo-lo por pressuposto). Alguma coisa do interior aflora em tudo do que de lá provém. Mas enquanto dependermos da via natural de conhecimento, sem ser guiado por iluminações divinas extraordinárias, essas exteriorizações não se apresentarão com forma nítida e que nos permita interpretá-las com segurança e clareza; sempre há de permanecer algo misterioso. E quando o interior se mantém fechado, nenhum olhar humano poderá força-lo para o penetrar. A alma tem relações não só com os seus semelhantes, mas também com os puros espíritos criados, bons e maus. De acordo com Dionísio Areopagita, João da Cruz é de parecer que as iluminações divinas são concedidas aos homens por intermédio dos anjos, embora admita que essa comunicação de graças pelos graus da hierarquia celeste não constitui a única via possível: ele reconhece a imediata união de Deus com a alma e é essa que mais lhe importa. Ele analisa mais atentamente as perseguições do demónio que a influência do anjo bom. O Santo observa que o demónio rodeia constantemente as almas, a fim de as afastar do caminho para Deus.

[...] No que tange aos homens, os puros espíritos, como tais, para se fazerem entender por eles, têm o poder de aparecer-lhes sob forma visível e de se tornarem presentes mediante palavras percetíveis. Contudo esse caminho é muito perigoso, pois faz-nos correr o risco de enganos e ilusões [...]

[...] os anjos têm conhecimento do mundo sensível e, portanto, das atitudes exteriores do homem, [16] porque o serviço que prestam aos homens supõem tal espécie de conhecimento. E o facto de esses anjos não necessitarem dos sentidos corporais para esse conhecimento indica haver outros meios possíveis para a percepção da natureza corporal. [...] O anjo da guarda «ouve» a oração que sobe até ele, brotando do silêncio do coraçã. O demónio percebe certos movimentos da alma e aproveita-os para as suas tentações. Mas os espíritos têm a capacidade de se tornarem compreensíveis à alma por via nitidamente espiritual, tais como palavras silenciosas que no interior da alma são proferidas e percebidas, sem intermédio dos sentidos exteriores; ou então utilizam-se de estímulos que são sentidos no interior como que determinados por factores externos. Por exemplo, a mudança repentina de disposição ou impulso da vontade que não encontram explicação em vista dos acontecimentos comuns da existência humana. Aquilo que não pertence à esfera dos sentidos exteriores pode, apesar disso, estar na dependência da sensibilidade em geral e não ter o significado de puramente espiritual [...] Puramente espiritual é somente aquilo que se passa no íntimo do coração, ou seja, a vida da alma em Deus e por Deus. [17] A essa intimidade os espíritos criados não têm acesso [...]" (pag. 129-132)

"Os pensamentos do coração constituem a vida originária da alma na sua mais pura essência. [...]Lá, a alma vive tal qual é em si mesma, fora do alcance de tudo quanto as coisas criadas nela possam suscitar. [...] Essa vida primordial é oculta, não só aos outros espíritos, como também à própria alma. [...] Vida psíquica significa não mais a vida primordial, mas o que é apreensível por uma percepção interna, que é diferente da primitiva sensação brotada no âmago da alma [...]

Nem tudo quanto começa a surgir e a ser sentido é efetivamente percebido. [...]somente quem levar uma vida plenamente recolhida alcançará perfeita vigilância sobre esses primeiros movimentos.

Assim chegamos a uma segunda razão pela qual a vida primordial é oculta ao próprio sujeito. [...] São poucas as almas que vivem no seu âmago e dele se sustentam. [...] Para fazê-los resolverem-se a «entrar em si próprios» é preciso que Deus os chame e os atraia vigorosamente." (pag. 132-133)

"Permanecendo nas mais íntimas profundezas do seu reino, a alma domina-o inteiramente e, sem abandonar o lugar onde permanece, goza da liberdade de mover-se dentro do próprio reino a seu bel-prazer. A possibilidade de mover-se dentro de si mesma funda-se nesta qualidade: a alma é um EU. O EU é aquilo que permite à alma abranger-se a si mesma e a tudo quanto nela se move, como que encerrando-se em si mesma e a tudo o mais, dentro de um âmbito espacial. Lá dentro, o ponto mais profundo é, ao mesmo tempo, a morada da sua liberdade: o lugar onde a alma pode enfeixar a sua existência e decidir sobre si própria. [...] somente no ponto mais profundo é possível avaliar todos os factores com exactidão. [...] aquele que não tem o pleno domínio de si próprio não conseguirá dispor de si com plena liberdade - será influenciado por outros factores.

O homem é chamado a viver no seu íntimo e, consequentemente, a governar-se a si próprio, o que só é possível nesse ponto de apoio. Somente assim poderá decidir e assumir um lugar conveniente frente ao mundo. Entretanto o homem jamais conseguirá explorar totalmente o seu íntimo. Este é um segredo de Deus que só ele pode desvendar conforme lhe aprouver. [...] os espíritos criados, bons e maus, não têm acesso a esse íntimo, não podem ler os pensamentos do coração - só Deus o faz. [...]

O direito de autodeterminação é propriedade inalienável da alma. Trata-se do grande mistério da liberdade pessoal que é respeitada até pelo próprio Deus. [...]

[...] Como então se configura o problema em relação à grande maioria dos homens que não chegam ao matrimónio místico? Poderão eles entrar no seu íntimo e nele tomar decisões, ou deverão contentar-se com decisões, mais ou menos superficiais? Não é fácil responder simplesmente «sim» ou «não».

[...] O «EU» toma posição conforme os motivos que se lhe apresentem. O seu movimento parte do pontoem que, de preferência costuma permanecer. Esse ponto não é o mesmo em todos nós: difere essencialmente em todos os tipos humanos. O homem que se abandonou aos prazeres dos sentidos acha-se geralmente entregue a algum prazer sensível ou empenhado em buscá-lo. O ponto das suas decisões está por isso mesmo, muito longe do seu íntimo. Quem procura a verdade prefere escolher como ponto central da sua permanência a actividade indagadora da inteligência; e, se é realmente a verdade que tal pessoa procura (e, portanto, não um mero amontoado de conhecimentos particulares), podemos afirmar que talvez ela esteja a aproximar-se de Deus, que é a própria Verdade, e portanto ase esteja a aproximar do seu próprio íntimo: estaria mesmo bem mais próxima do que se poderia conjeturar. Vamos acrescentar aos dois exemplos precedentes um terceiro, por se revestir, a nosso ver, de singular importância: o do homem egocêntrico, aquele para quem o «EU» constitui o ponto central. À primeira vista, parece que esse homem alcançou especial profundidade no seu íntimo. Entretanto, não há tipo humano cujo acesso ao íntimo esteja tão entravado quanto esse. Algo semelhante se passa em todos os indivíduos enquanto não atravessarem a noite escura inteiramente. [...]

[...] Ninguém, humanamente falando, é capaz de avaliar todas as razões pró ou contra que influem na decisão. Só há uma coisa a fazer: tomar a decisão de acordo com o que a consciência individual consiga discernir como melhor. O homem de fé, porém sabe que existe Alguém cuja inteligência é ilimitada e que, por isso mesmo, tudo abrange e penetra. A consciência de quem vive compenetrado nessa certeza de Fé não se contentará com o que pessoalmente lhe parecer melhor: há de procurar o que é certo aos olhos de Deus. Por aí é que somente a atitude religiosa é a verdadeira atitude ética. Por certo, mesmo na ordem natural, o que é correto e o que é bom nos atrai, é procurado e às vezes é atingido. mas somente na procura da Vontade Divina haverá realização verdadeira, além da certeza de fazer o que é justo e certo. [...] Quem procura hic et nunc o que é certo, e toma decisões de acordo com o seu entendimento, encontra-se a caminho de Deus e de si próprio, ainda que não o saiba. [...] Quem procura por princípio o que é reto, isto é, quem tiver a vontade de o praticar em todas as circunstâncias, decidiu sobre si mesmo e entregou a sua vontade à vontade Deus, mesmo que não veja com clareza que a prática do que é reto coincide com a vontade divina. [...] Aquele que com Fé cega, não quiser senão o que Deus quer, alcançou o sumo grau a que o homem pode chegar com a graça de Deus [...]" (pag.134-139)

"[...] São João da Cruz distingue três formas de união com Deus: [18] pela primeira, Deus está essencialmente presente nas coisas criadas, mantendo-lhes a existência; pela segunda dá-se a inabitação na alma, mediante a graça; enquanto a terceira consiste na união transformadora, mediante o amor perfeito. [...]

A inabitação pela graça existe somente nos seres de natureza pessoal e espiritual, porque requer de quem a recebe a livre aceitação de graça santificante. [...]

É devido à própria natureza que não se realiza a inabitação nos seres impessoais. [...] e somente quem vive em espírito pode receber vida espiritual. [...] Nas almas, o Espírito Santo é infundido pela graça e é por ele que ela vive a vida da graça. Nele, a alma ama o Pai com o amor do Filho e ama o Filho com o amor do Pai.

A convivência da alma com a vida trinitária pode realizar-se ainda que a própria alma não se dê conta da inabitação das três pessoas divinas.

[...] A Fé é o caminho que nos leva À união com Deus, embora a consumação final pertença à outra vida.

[Santa Teresa fala] de um arrebatamento da alma em Deus, que a torna completamente insensível às coisas do mundo e inteiramente atenta a Deus. [...] Esse estado dura pouco tempo (cerca de trinta minutos , talvez), mas é de tal modo a permanência de Deus na alma «que , quando volta a si, não pode de maneira nenhuma, duvidar de que estava em Deus e Deus nela. Com tanta firmeza lhe fica gravada essa verdade, que ainda que passem anos sem que Deus torne a conceder-lhe aquela graça, não se esquece de onde esteve, nem consegue duvidar disso; sem falar nos efeitos que nela permanecem...» [...] o que perdura é «uma certeza que fica na alma e que só Deus pode transmitir». [...]

A primeira modalidade de inabitação - ou melhor, de divina presença, por não ser inabitação propriamente dita - nada mais requer do que o facto de o sujeito no qual Deus está presente se encontrar submetido à ciência e potência divinas, além de estar condicionado pela divindade. Tudo isso é comum a todas as criaturas. O ser divino e a criatura permanecem completamente separados; entre eles há somente uma relação de dependência existencial e unilateral que não significa união, nem, portanto, inabitação. Para haver inabitação é preciso que ambas as partes sejam seres interiores, ou seja, seres que se apreendam e se compreendam intimamente e que sejam capazes de receber outro ser espirituais, pois somente eles podem permanecer em si próprios e ao mesmo tempo receber outro ser espiritual - modo pelo qual se realiza a verdadeira inabitação. [...]

Pela autopurificação, a vontade humana une-se cada vez mais à vontade divina, mas isso ocorre sem que essa seja aceite como realidade presente: é aceite como fé cega. [...] Na purificação passiva, pelo fogo consumidor do amor divino, a vontade divina penetra cada vez mais a vontade humana e, ao mesmo tempo, faz-se sentir como realidade presente. [...]

[...] A inabitação pela graça confere a virtude da Fé, ou seja, a força de aceitar o que não se pode provar rigorosamente com razões e te como real aquilo que não se percebe na sua presença. [...] Deus concederá gradativamente ao homem pela terceira modalidade de inabitação, a vocação mística [...] um encontro pessoal, por meio de um íntimo toque. Revelará o seu próprio interior por iluminações particulares da sua natureza e dos seus desígnios secretos. [...] Nos vários graus unitivos, realiza-se a união que parte da fonte de vida pessoal e vai até à mútua entrega das pessoas.

Observemos ainda que o simples toque no íntimo não exige, como condição necessária, a inabitação pela graça. Esse toque pode ser dado ao incrédulo para o despertar da fé e a preparação para a graça santificante. Pode servir também para tornar um incrédulo capaz de se prestar como instrumento para determinadas finalidades. Isso vale quanto às iluminações. A união, porém, que é entrega mútua, não pode existir sem fé e amor, ou seja, sem a graça santificante. [...] Se a união é de facto a finalidade para a qual as almas foram criadas, deve existir previamente uma proporção que possibilite essa união. [...] Já foi dito que o matrimónio místico vem a ser a união com a Santíssima Trindade. Enquanto o toque de Deus na alma ocorrer na obscuridade e às escondidas, só se notará o toque pessoal em si, sem perceber se o contacto foi com uma ou diversas pessoas. Quando, porém, houver completa integração na vida divina, pela perfeita união amorosa, chegar-se-á a saber que se está a viver uma vida trinitária - com as três pessoas divinas - e que se tem contacto com essas três pessoas." (pag. 139-151)

"A obscuridade da fé é [...]comparada à escuridão da meia noite - devemos prescindir totalmente da luz natural da inteligência para alcançar a luz da Fé." (pag. 151)

"Tanto na Fé como na contemplação, a alma é tomada por Deus. A aceitação da verdade revelada não é somente uma questão de resolução da vontade natural: a mensagem de Fé é dirigida a muitos que não a aceitam. Para tanto, pode haver motivos de ordem natural; também existem casos em que há uma misteriosa impossibilidade: a hora da graça ainda não chegou, a sua inabitação ainda não começou. Na contemplação, porém, a alma encontra-se com o próprio Deus, que dela se apodera.

Deus é amor. Ser possuído por Deus, quando o espírito estiver preparado, é inflamar-se em amor. O amor eterno é fogo que devora tudo o que é finito, e finitos são os movimentos despertados na alma pelas criaturas. Voltando-se para elas, a alma afasta-se do amor divino, mas sem conseguir escapar-lhe. O amor torna-se para ela fogo devorador. [...] Ainda que a alma, por natureza, não possa desfazer-se como os elementos materiais, se por livre entrega vier a enraizar-se no temporal, sentirá a mão do Deus vivo que, na sua omnipotência, poderia destruí-la, consumindo-a no fogo vingador do seu divino amor desprezado, ou devorá-la eternamente, como os anjos caídos. Esta última é a morte propriamente dita, e seria a sorte de todos nós se Cristo não se tivesse colocado entre nós e a divina justiça, abrindo-nos, por sua paixão e morte, o caminho para a misericórdia.

[...] O «Consummatum est» é o anúncio do fim do holocausto expiatório; o «Pater, in manus tuas comendo spiritum meum» é a volta definitiva para a união de amor eterna e inalterável.

Na paixão e morte de Jesus Cristo, os nossos pecados foram consumidos pelo fogo. Se aceitarmos essa realidade na fé, e em piedosa entrega aceitarmos o Cristo integral - o que significa escolher e trilhar o caminho da imitação de Cristo - então, o mesmo Cristo nos levará, pela sua paixão e cruz, à glória da ressurreição. É justamente isso o que se experimenta na contemplação: ela é morte e ressurreição. Após a noite escura, começa a raiar a chama viva de amor." (pag. 153/154)

"A viva chama de amor é o Espírito Santo [...] O Espirito Santo provoca um incêndio de amor em que a vontade da alma e a chama divina se tornam um único amor. [...] Todos os movimentos da alma são então divinos, são actos de Deus e ao mesmo tempo da alma, «porque os faz nela e com ela, que entrega a sua vontade e consentimento».

[...] O facto é que «numa alma já examinada, provada e purificada no fogo das tribulações, sofrimentos e tentações, e que se tenha mostrado fiel no amor, é por causa dessa fidelidade que se realiza o que o Filho de Deus prometeu... que se alguém o amasse, a Santíssima Trindade viria a ele e nele faria morada». [19]

Ora, Deus fará morada na alma «ilustrando-lhe divinamente a inteligência com a Sabedoria do Filho, deleitando-lhe a vontade no Espírito Santo enquanto o Pai a absorve poderosa e fortemente no abismo do seu amor». [...] «Oh! amor ardente que com os teus movimentos amorosos deliciosamente me glorificas, cumulando a capacidade e energia da minha alma!... dando-lhe entendimento divino, que sacia toda a aptidão e capacidade da minha inteligência; comunicando-me todo o amor que comporta a máxima energia da minha vontade [...] não só deixaste de ser para mim escura como antes, mas és a divina luz da minha inteligência, com que te posso fitar; não só deixaste de causar desfalecimento à minha fraqueza, mas és a força da minha vontade, com a qual posso amar-te e fruir-te, estando toda transformada em divino amor [...]

A alma chama de encontro esse «ser tomado pelo Espírito santo»: Deus investe sobre ela com ímpeto sobrenatural, elevando-a acima da carne e conduzindo-a à consumação almejada. Trata-se de verdadeiros encontros - o Espirito Santo penetra a sua essência, transfigura-a e diviniza-a." (pag. 156/161)

"O suave cautério do amor cauteriza as feridas da miséria e do pecado, transformando-as em feridas de amor. [...] toda a alma será uma chaga de amor [...] ficando toda ferida e toda curada [...]

A mão que produz a ferida é o Pai, piedoso e onipotente [...] Feriste-me para curar-me, ó divina mão! Mataste em mim o que me deixava longe, debaixo da árvore da morte, sem a vida de Deus na qual agora vivo. Foi o que realizaste com a liberalidade da tua generosa graça, que me comunicaste ao tocar-me com o toque do resplendor da tua glória e figura da tua substância, que é o teu Filho Unigénito. [...] Só verão e sentirão o teu toque delicado aqueles que, afastando-se do mundo, se tornarem delicados, para que a delicadeza encontre delicadeza [...]

Se há tão poucos «que chegam a tão alto estado, de perfeita união com Deus... não é porque Deus queira que haja poucos desses espíritos elevados... mas é que acha poucos... que se disponham a operação tão alta e sublime». [...]

Num retrospecto, a alma reconhece que tudo foi ordenado para sua salvação e que a luz presente é proporcional às trevas passadas. [...] Na vida nova de união, todos os apetites e faculdades da alma, todas as suas tendências e atividades serão divinamente transformados." (pag. 162-166)

"Quando Deus tiver concedido à alma a luz da sua graça, os olhos do espírito serão iluminados e abertos para a luz divina. E como um abismo de trevas chamava a outro, agora um abismo de graça chama a outro, ou seja, depois da transformação da alma em Deus, a luz divina funde-se agora com a luz da alma, a ponto de somente a primeira brilhar.

O sentido da alma também estava cego por procurar satisfação em coisas que não eram Deus. O desejo encobria-lhe os olhos da inteligência como cataratas, deixando-os cegos para as sublimes formosuras e riquezas de Deus. a menor coisa que se coloque diretamente diante da vista impede de enxergar as coisas mais distantes. Basta o menor desejo para impedir a alma de enxergar todas as maravilhas de Deus.[...] Para os homens em que prevalece a vida sensível, isto é, os que vivem segundo os seus apetites e inclinações naturais, os apetites de origem espiritual tornam-se puramente naturais. Mesmo quando a alma aspira a Deus, o desejo nem sempre é sobrenatural; só o é quando Deus o infunde e fortalece.

Assim, o sentido da alma com os seus apetites e inclinações estava obscuro e cego; agora, porém, está iluminado pela união sobrenatural com Deus.

[...] A inteligência unida a Deus reflete a sabedoria tal qual a recebe. E conforme a perfeição com que está unida à bondade divina, assim a vontade irradia para Deus em Deus. [...] Assim como Deus se lhe entrega por livre e espontânea vontade, assim ela dá Deus ao próprio Deus em Deus, e a sua vontade será tanto mais livre e generosa quanto mais unida a Deus... [...] É causa de grande satisfação e contentamento para a alma ver que dá a Deus mais do que ela é e vale em si, dando, com tanta liberalidade, Deus a si próprio, como coisa dela...

[...] A alma, doravante, só encontra prazer em Deus, sem intromissão de criatura alguma: ela goza de Deus somente pelo que ele é em si mesmo, sem que intervenha outro gozo." (pag. 172-174)

"A alma vem a falar do maravilhoso efeito nela produzido, às vezes, por Deus: ocorre-lhe a imagem de alguém que desperta do sono e torna a respirar profundamente, parecendo-lhe que algo semelhante se passa dentro de si.

[...] E este é o grande deleite do despertar: conhecer as criaturas por meio de Deus, e não a Deus por meio das criaturas... [...] É totalmente indizível o que a alma conhece e experimenta nesse despertar da excelência de Deus.

[...] O Rei dos Céus se lhe mostra como igual e irmão. [...] Tudo isso se passa no íntimo do seu ser, onde ele «só e secretamente mora». Em algumas, ele mora a sós; em outras, não; em algumas com prazer, em outras contrariado; em algumas sente-se em casa, onde tudo orienta e dirige; em outras, como estranho, a quem não se permite mandar nem nada fazer.

[...] Numa alma completamente livre de todas as tendências, despida de todas as formas, imagens e inclinações relativas às criaturas, ele permanecerá totalmente escondido num íntimo abraço. [...] Feliz a alma que sempre sente ao vivo que Deus nela repousa e encontra o seu agrado! É preciso que se conserve em grande tranquilidade, para que nenhum movimento ou ruído perturbe o Amado.

[...] ao acordar para o mais sublime conhecimento de Deus, a alma é soprada pelo Espírito Santo e fica inflamada pelo amor daquilo que viu." (pag. 175-178)

"Quando o sentimento de impossibilidade perante o indizível impõe silêncio a são João da Cruz, como ousar dar explicação objetiva às suas palavras? Quiséramos somente agradecer-lhe por nos ter feito divisar uma terra maravilhosa, um paraíso terrestre nos umbrais do celeste. Devemos, entretanto, tentar relacionar o que nos foi descortinado com o que já era conhecido. Foi o amor às almas que o fez abrir a boca: o Santo deseja inspirar-lhes ânimo para encetarem o duro caminho da cruz, caminho íngreme e estreito, mas que termina em alturas tão luminosas e felizes!

[...] Não há outro caminho para a união a não ser o da cruz e da noite, isto é , a morte do homem velho [...]

[...] Na Chama viva de amor, poesia e interpretação são uma só coisa. [...] O Santo viveu sempre imerso na sagrada escritura; sempre se lhe apresentaram espontaneamente imagens e comparações bíblicas, e delas fez uso para fixar e confirmar com palavras da Escritura o que a própria experiência lhe ensinava. Mas nesse escrito, a harmonia entre a sua própria experiência, a Palavra Divina revelada e os acontecimentos da história sagrada é acentuadamente perceptível. (pag. 178-180)

"Lido despreocupadamente na sua primeira redação, o Cântico dá-nos ideia de ser a expressão fiel do caminho místico na sua totalidade. [...]

Ela [a alma] conhece o Senhor não só de "ouvir dizer", mas já o encontrou pessoalmente, tendo-lhe experimentado o toque no íntimo da alma. [...] Uma vez tocada intimamente por Deus, a alma já não encontra repouso em coisa alguma que não seja Deus. «Para os feridos de amor, não pode haver remédio que não provenha daquele que feriu!»

[...] Todos os encantos das criaturas servem à alma para cantar os louvores da beleza divina. Junto ao divino Esposo, ela é comulada de dons, formosura e força maravilhosa: é imersa em amor e paz." (pag.189-192)

O motivo principal do Cântico é constituído pela tensão da alma entre a ausência dolorosa e o encontro feliz. [...] A relação da alma com Deus - encarada como finalidade que ele desde toda a eternidade lhe reservara, ao criar a alma - não pode ser melhor designada do que pela união nupcial. Ao contrário: aquilo que se denomina união nupcial não alcança realização quanto a união amorosa de Deus com a alma. Entendido isso, ocorrerá a inversão de papeis entre a figura e a realidade: é o estado de esposa de Deus que passa a ser entendido como o autêntico estado nupcial - o modelo do qual as relações nupciais humanas aparecem como esboço - tal como a paternidade de Deus é modelo de toda a paternidade na terra. [...] A realidade do matrimónio serve de expressão a um segredo divino: eis o supremo sentido da sua existência. [20] (pag. 193-194)

"Um dia [a irmã Madalena do Espírito Santo]perguntou ao poeta se fora Deus quem lhe inspirara aquelas palavras tão significativas e de conotações tão belas. Ele respondeu: «Minha filha, às vezes era Deus quem mas dava; outras vezes, eu mesmo as procurava».

[...] Essa plenitude do Espírito, inteiramente abstrata e sobrenatural, nunca se prestará à completa expressão verbal. [...]

[...] E ainda quando era ele que procurava a expressão condizente, não o fazia, por certo, sem auxílio do Espírito Santo.

[...] Como o cervo que aparece rapidamente no limiar da mata e desaparece ainda mais rapidamente quando é visto pelo olhar humano; foi assim que o Senhor agiu nos primeiros encontros. Ele mostrou-se à alma e desapareceu antes que esta pudesse retê-lo.

[...] Ele reapareceu como o servo: no cume do outeiro, isto é, nas culminâncias da contemplação. Ele apenas se diexa entrever, «por altos que sejam os conhecimentos de Deus que à alma são concedidos nesta vida, todos são como vislumbres muito furtivos». [...] O sopro do seu voo é o espírito de amor que ela exala nessa alta contemplação e conhecimento de Deus, tal como o Pai e o Filho exalam o Espírito Santo. Por voo deve ser entendido o conhecimento infuso de Deus, e por sopro do voo deve-se entender o amor que daí surge. [...] no voo espiritual realiza-se,..., o noivado com o filho de Deus. [...] A alma entra «num estado de paz, delícia e doçura de amor» e não faz outra coisa senão «contar e cantar as grandezas do seu Amado». Nos êxtases de amor, ela experimenta o que são Francisco procurava exprimir com as palavras «Meu Deus e meu tudo!» [...] Por meio desses fracos vislumbres é que são reveladas à alma as perfeições das criaturas.

[...] Pelo conhecimento de Deus, abre-se-lhe um mundo novo e maravilhoso, tal como acontece com o navegante, ao descortinar terras e ilhas longínquas. [...] É uma voz interior de incalculável sonoridade que enche a alma de força e vigor, tal como sucedeu no momento da descida do Espírito Santo sobre os apóstolos. O estrondo ouvido pelos habitantes de Jerusalém foi somente um indício do que os apóstolos interiormente receberam. Apesar da sua força, essa voz é agradável de ouvir. São João ouviu-a como «ruído das grandes águas e ribombar de potente trovão» e ao mesmo tempo como «músicos tocando as suas cítaras». [21]

[...] Assim como se experimenta o toque do ar pelo tato, e o silvo do ar pela audição, assim também se experimenta e desfruta o toque das perfeições do Amado com o tato da alma, [...] e o entendimento de tais virtudes percebe-se pelo ouvido da alma, que é a inteligência. Tal comunicação é imensamente agradável e benéfica... [...]

Pode-se conjeturar que era assim que o nosso santo Pai Elias viu a Deus no «murmúrio de uma brisa ligeira» [22] e também são Paulo, quando «ouviu palavras inefáveis que não é permitido a um homem repetir» [23] Porque «ouvir com a alma é ouvir com a inteligência». Por certo, não se trata da visão clara e perfeita de Deus, como na glória, mas de um «clarão nas trevas». [24]

Na calma e no silêncio dessa noite iluminada, «é dado à alma ver a admirável harmonia da Ordem da divina Sabedoria nas diferenças de todas as suas criaturas e obras. Todas e cada uma delas estão dotada de certa ressonância de Deus, como o que cada uma à sua maneira proclama o que nelas há de divino, de sorte que isso parece à alma uma elevadíssima harmonia musical, que sobrepuja todos os concertos e melodias do mundo.» ...

A contemplação de Deus é considerada alimento dos anjos e santos... O Amado «ceará com ela» [25]...

... Satanás «prefere subtrair a esta alma uma só migalha desta sua riqueza e do seu deleite glorioso, a fazer com que numerosas outras almas caiam em muitos e graves pecados; porque as outras almas pouco ou nada têm a perder, ao passo que esta possui muito, porque o que adquiriu é grande e precioso».

Assim os espíritos maus instigam os desejos, para provocar confusão na alma... é que o demónio sabe que, tendo entrado naquele recolhimento, a alma fica tão amparada, que por mais que ele se esforce não poderá causar-lhe dano. E muitas vezes, quando ele tenta derruba-la, a alma costuma recolher-se às pressas no profundo esconderijo do seu interior, onde encontra grande deleite e amparo. Assim fazendo, os terrores que suporta ficam tão distantes e tão fora dela, que não só não a atemorizam, mas lhe causam gozo e alegria! Contudo, se se sentir inquietada pedirá aos anjos «que cacem as raposas», porque eles têm a tarefa de afugentar os maus espíritos.

... Quando o Espírito Santo se apodera da alma, «inflama-a toda, deleita-a, vivifica e deleita a vontade e suscita os desejos... de amor a Deus».

... No sopro do Espírito Santo, o Filho de Deus comunica-se à alma de modo sublime.

... O nome Judéia é dado à parte sensitiva da alma, fraca, sensual e cega, como o povo judaico.. A alma deseja ver a Deus face a face. Ela o encontrou em seu interior, onde com ele quer ficar escondida.... A alma está ciente de que a fraqueza da sua natureza sensível sucumbiria ante a sublimidade do que se passa nas montanhas, e assim o espírito ficaria impedido de contemplar a face de Deus. Ela deseja estar inteiramente livre do peso do corpo para experimentar no íntimo o toque da essência de Deus e alegrar-se com o maravilhoso adorno que lhe foi concedido por ele: um conhecimento da Divindade muito superior ao alcance das vias convencionais de conhecimento.

... Essa união em Deus deixa a esperança o mais satisfeita possível nesta vida, e nada mais espera a alma deste mundo.

... Assim iluminada, radicada em Deus com firmeza e segurança, a alma não será jamais inquieta pelos horrores dos maus espíritos. «Coisa alguma pode agora atingi-la ou molestá-la.»

... Assim como no paraíso a natureza humana foi arruinada e entregue à perdição, ao comer o fruto proibido da árvore, assim também, debaixo da árvore da cruz, ela foi por ele remida e restaurada. Foi lá do alto, do cume da cruz, que o Esposo lhe deu a mão da sua graça e misericórdia, e pelos méritos da sua paixão e morte desfez a inimizade que separava o homem de Deus, desde o pecado original." (pag. 194-204)

... Já dissemos no início que os sofrimentos da Noite escura são participação na paixão de Cristo e sobretudo no sofrimento mais profundo: o abandono por Deus.... Mas qual a dor comparável à do Homem-Deus que, possuindo a visão beatífica de Deus durante a vida inteira, privou-se dessa felicidade na noite do Getsémani?... O abandono por Deus, em grau supremo, foi reservado a Jesus: somente ele poderia sofrer esse abandono, pois era simultaneamente Deus e homem; como Deus, não poderia sofrer; como simples homem, não poderia avaliar o bem de que se privara. Eis por que a encarnação é condição de tal sofrimento: a natureza humana, sendo capaz de sofrer e sofrendo realmente, é o instrumento da redenção. O motivo do sofrimento redentor e, portanto, da encarnação, é a natureza humana exposta à queda e realmente decaída. Pela queda de Adão, a natureza humana perdeu nos primeiros pais a sua dignidade: a perfeição primitiva e a elevação pela graça. Em cada alma que renasce pela graça do batismo, a natureza é reerguida, e nas almas eleitas, que chegam à união nupcial com o Redentor, ela é coroada. Isso realiza-se «debaixo da árvore da cruz», como fruto da morte na cruz, fruto amadurecido pela participação no sofrimento dessa morte. Em que sentido, porém, havemos de entender que o lugar da restauração será o mesmo que o da queda, e que a árvore da cruz seja a própria árvore do paraíso?

A solução parece-me estar no segredo do mistério do pecado. A árvore do paraíso, cujos frutos eram proibidos ao homem, é a árvore do conhecimento do bem e do mal. Somente praticando o mal é que os homens poderiam experimentá-lo, compreendendo então a sua radical oposição ao bem. Assim, podemos considerar a árvore do paraíso como símbolo da natureza humana na sua vulnerabilidade pelo pecado e podemos considerar que o fruto da árvore é o próprio pecado (tanto o original como os posteriores), com todas as suas consequências. A mais terrível das consequências do pecado e, por isso mesmo, a manifestação de toda a sua atrocidade, é a paixão e morte de Cristo.

A redenção, portanto, é fruto da árvore do paraíso em vários sentidos: o que justificou a paixão e morte de Cristo foi o pecado em todas as suas manifestações, tornando-se desse modo instrumento de redenção. Além disso, a alma unida a Cristo, participando do seu sofrimento (ou seja, da noite escura da contemplação), chega ao conhecimento do bem e do mal e experimenta a força redentora desse conhecimento: tanto que se repete muitas vezes a afirmação de que alma só chega à purificação pelo profundo sofrimento causado pelo conhecimento da sua pecaminosidade....

A alma que atingiu o matrimónio místico acha-se na adega interna, isto é, no mais alto grau de perfeição. O Santo distingue sete graus de amor, correspondentes aos sete dons do Espírito Santo e considera que o último e mais perfeito desses dons é o temor divino.

… a alma nesse ponto está, de certo modo, como Adão no Paraíso, inocente, não sabendo o que fosse o mal; porque está de tal forma inocente que não entende o mal e de nada faz mau juízo: há de ouvir coisas más, há de vê-las com os seus olhos sem poder entender que são más… o desconhecimento do mal pertence ao estado de inocência renovada, no cume da perfeição… absorta em Deus a alma não pode ocupar-se com outra coisa… além disso, aquela transformação em Deus deixa-a tão conforme à simplicidade e pureza de Deus … que a torna limpa, pura e vazia de todas as formas que antes possuía...

O beber na adega tem inda outro efeito: em lugar do homem velho, surge um outro, completamente novo. Antes de a alma entrar nesse estado de perfeição, permanece com ela, apesar da sua alta espiritualidade, um rebanho de concupiscências, alegrias vãs e imperfeições… que tais almas seguem «até que entrando e bebendo nessa adega interior elas o abandonem, pois tudo fica transformado em amor…»

Na união nupcial, Deus cuida da alma com tanto amor que nem mesmo o mais terno amor de mãe lhe pode ser comparado.

Deus só se compraz no amor e nas suas manifestações: eis porque a seus olhos todas as nossas obras e esforços são um simples nada: sim, nada lhe podemos dar, nada lhe faz falta, e ele nada exige. O que deseja é que a alma seja engrandecida, e como não há melhor meio de engrandece-la do que igualá-la a si, por isso, e somente por isso, é que ele deseja que a alma o ame, pois é próprio do amor igualar aquele que ama com o objeto amado.

A alma já não tem outro exercício senão amar a Deus: isto refere-se tanto à sua vida de oração quanto às suas ocupações temporais.

… Ela «não pretende ganho ou prémio, e sim perder a tudo e a si própria, só querendo a Deus»... Ela está ganha por Deus «porque deveras se perdeu para tudo o que não é Deus»... Grande poder e força tem o amor, pois liga e prende ao próprio Deus. Quem possui a Deus por meio de tal amor desinteressado consegue tudo o que deseja.

… Deus não pode amar nada fora de si; para ele, amar uma alma é de certo modo introduzi-la em si mesmo igualando-a consigo.

… é grande a torpeza e cegueira da alma privada da divina graça...

… a alma não deve esquecer-se das suas antigas faltas: assim nunca haverá de tornar-se presunçosa e há de manter-se sempre agradecida… Antes que estivesse na graça, ele a amava por si mesmo; agora que já está na graça, ele não só a ama por si, mas também por ela mesma.

Por amor ao Amado, a alma entrou espontaneamente em solidão, isto é, renunciou a todas as coisas terrestres… Nesta solidão que a separa de todas as coisas e em que se acha a sós com Deus, ele a guia, estimula e eleva para as coisas divinas...

… como água limpa, a Sabedoria divina há de purifica-la de todas as manchas da ignorância; à medida que cresce o amor, maior se torna o desejo de conhecer com mais clareza e limpidez as verdades divinas e de penetrar, cada vez mais profundamente, os abismos dos desígnios e segredos insondáveis de Deus… Oh! Se ficasse bem entendido que não se pode chegar às profundezas da sabedoria nem às riquezas de Deus - que são multiformes -, a não ser entrando na profundidade do pleno sofrimento e pondo-se nisso a consolação e o desejo da alma!... há muito que aprofundar-se em Cristo, «no qual estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência». [26]

«Ao vencedor darei o maná escondido e lhe entregarei uma pedra branca, e na pedra será gravado um nome novo, que ninguém conhece senão aquele que o receber.» [27]

«Farei o vencedor sentar-se comigo no meu trono, assim como também eu venci e me sento com meu Pai em seu trono.» [28]

O Espírito Santo durante essa transformação sopra a alma no Pai e no Filho, para uni-la consigo… Esse sopro do Espírito Santo na alma, com que Deus a transforma em si, causa-lhe tão elevado, delicado e profundo deleite que não há como dizê-lo com linguagem mortal, nem a inteligência humana por si pode entender qualquer coisa disso… E não se deve julgar impossível que a alma alcance coisas tão altas… porque se Deus lhe permitir unir-se à Santíssima Trindade, tornando-a deiforme e endeusando-a por participação, que haverá de incrível no facto de a alma exercer as acções da inteligência, da vontade e do amor… na Trindade, juntamente com ela, e como a própria Santíssima Trindade?

Nesta vida, porém, a transformação nunca está isenta de sofrimento, mesmo no mais alto grau de amor: a natureza sempre há de sentir-se ansiosa. O sofrimento provém de continuar a faltar ao espírito a transformação beatífica e do detrimento que a força e a sublimidade de tanto amor causam aos sentidos, fracos e corruptíveis, porque qualquer coisa excelente é detrimento e dor para a fraqueza natural… Mas na vida beatífica, nenhum detrimento nem dor padecerá, embora tenha conhecimento profundíssimo e amor imenso, porque Deus lhe dará aptidão para conhecer e fortaleza para amar, e lhe aperfeiçoará a inteligência com a Sabedoria divina e a vontade com o divino Amor.

Verdade é que os sentidos não podem saborear as águas dos bens espirituais; somente chegam à vista dessas águas, porque à parte sensitiva falta capacidade para saborear essencial e propriamente os bens espirituais, seja nesta vida, seja na outra. Entretanto, certa redundância do espírito permite-lhe receber sensorialmente alegrias e deleites com esses bens. Com esse deleite, os sentidos e faculdades corporais são atraídos ao recolhimento interior, onde a alma se encontra a beber a água dos bens espirituais.

Desde toda a eternidade a alma foi predestinada a participar como esposa do filho de Deus, da vida trinitária, da Divindade…. toda a vida carnal é feita de luta e sofrimento. Estes atingiram o Filho do Homem mais que qualquer outro da humanidade, e, entre os homens, são mais atingidos os que mais intimamente estão ligados a Cristo…. Ele afugenta Satanás e todos os espíritos malignos, onde quer que os encontre pessoalmente, e arranca as almas da sua tirania. Ele revela cruamente a malícia humana onde quer que se lhe oponha, cega, disfarçada e obstinada…. Ele abre as comportas da misericórdia do Pai para todos os que têm a coragem de abraçar a cruz do Crucificado. Sobre eles derrama a sua luz e a sua vida, que são divinas e que destroem incessantemente tudo quanto se lhes opõe e por isso dão, a princípio, a sensação de noite e morte. Esta é a noite escura da contemplação, a morte de cruz para o homem velho. A noite torna-se tanto mais escura, e a morte mais penosa, quanto mais intenso for o apelo do amor divino e quanto mais incondicionalmente a alma se lhe entregar. O desmoronamento progressivo da natureza humana dá mais espaço à luz sobrenatural e à vida divina, a qual se apodera das energias naturais e as transforma em energias divinizadas e espiritualizadas. Desta forma, realiza-se no cristão uma nova encarnação de Cristo, equivalente a uma ressurreição da morte na Cruz. O homem novo traz no corpo os estigmas do Cristo: são a lembrança da miséria dos pecados, de onde foi ressuscitado para a vida bem-aventurada, e a lembrança do preço que isso custou. Resta-lhe a ânsia pela plenitude da vida, até que a morte física lhe permita entrar na luz sem sombra.

Assim entendida, a união nupcial da alma com Deus é o fim para o qual a alma foi criada, e é uma união adquirida pelo preço da cruz, realizada na cruz e selada, para todo o sempre com a cruz.


[11Cor 1,17-18.22-24.

[2Gl 2, 19-20.

[3Cf Gl 6,17.

[42Cor 12,9.

[5Gl 5,24.

[6Cântico Espiritual, Explicação da Canção XXIII.

[7Cf. Gl 5,22.

[8A frase é do profeta Isaías.

[9Cf. Mt 7,14.

[10Cf. Mc 8,34.

[11Cf. Mt 20,21.

[12Mt 11,30.

[13Subida 1. II, c. 7.

[14Jo 4,23.

[15Cf. Subida, 1. II, c 24.

[16Cf. santo Tomás de Aquino, De Veritate, q. 8 a II corp. (in: Investigações sobre a verdade I, 224).

[17Cf. Chama viva de amor, explicação da estrofe 2, verso 6.

[18Subida, 1. II, c. 4.

[19Cf. Jo 14,23.

[20Cf. Ef 5,23.

[21Cf. Ap 14,2.

[221Rs 19,12.

[232Cor 12,4.

[24Dionísio Areopagita, Mystica teológica, c. I.

[25Cf. Ap 3,2.

[26Cl 2,3.

[27Ap 2,17.

[28Ap 3,21.